sábado, 1 de agosto de 2009

Senhora - José de Alencar (Trechão Parte III - Final)





"(...) Fernando Seixas, obedecendo automaticamente a Aurélia, sentara-se e fitava na moça um olhar estupefato. A moça arrastou uma cadeira e colocou-se em face do marido, cujas faces crestava o seu hálito abrasado.
- Não careço dizer-lhe que amor foi o meu e que adoração lhe votou minha alma desde o primeiro momento em que o encontrei. Sabe o senhor, e se o ignora, sua presença aqui nesta ocasião já lhe revelou. Para que uma mulher sacrifique assim todo seu futuro, como eu fiz, é preciso que a existência se tornasse para ela um deserto, onde não resta senão o cadáver do homem que a assolou para sempre.
Aurélia calcou a mão sobre o seio para comprimir a emoção que a ia dominando.
- O senhor não retribuiu meu amor e nem o compreendeu. Supôs que eu lhe dava apenas a preferência entre outros namorados e o escolhia para herói dos meus romances, até aparecer algum casamento, que o senhor, moço honesto, estimaria para colher à sombra o fruto de suas flores poéticas. Bem vê que eu o distingo dos outros, que ofereciam brutalmente, mas com franqueza e sem rebuço, a perdição e a vergonha.
Seixas abaixou a cabeça.
- Conheci que não me amava como eu desejava e merecia ser amada. Mas não era sua culpa e só minha que não soube inspirar-lhe a paixão, que eu sentia. Mais tarde, o senhor retirou-me essa mesma afeição com que me consolava e transformou-a para outra, em quem não podia encontrar o que eu lhe dera, um coração virgem e cheio da paixão com que o adorava. Entretanto, ainda tive forças para perdoar-lhe e amá-lo.
A moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:
- Mas o senhor não me abandonou pelo amor de Adelaide e sim por seu dote, um mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito de fazer e o que jamais lhe podia perdoar! Desprezasse-me embora, mas não descesse da altura em que o havia colocado dentro de minha alma. Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal e atirou-o no pó. Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime; a sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.
Seixas, que tinha curvado a fronte, ergue-a de novo e fitou os olhos na moça. Conservava ainda as feições contraídas e gotas de suor borbulhavam na raiz de seus belos cabelos negros.
- A riqueza que Deus me concedeu chegou tarde; nem ao menos permitiu-me o prazer da ilusão, que têm as mulheres enganadas.Quando a recebi, já conhecia o mundo e suas misérias; já sabia que a moça rica é um arranjo e não uma esposa; pois bem, disse eu, essa riqueza servirá para dar-me a única satisfação que ainda posso ter neste mundo. Mostrar a esse homem, que não me soube compreender, que mulher o amava e que alma perdeu. Entretanto ainda eu afagava uma esperança. Se ele recusa nobremente a proposta aviltante, eu que irei lançar-me a seus pés. Suplicar-lhe-ei que aceite a minha riqueza, que a dissipe se quiser; mas consinta-me que eu ame. Esta última consolação, o senhor a arrebatou. Que me restava? Outrora atava-se o cadáver ao homicida, para expiação da culpa; o senhor matou-me o coração; era justo que o prendesse ao despojo de sua vítima. Mas não desespere, o suplício não pode ser longo: este constante martírio a que estamos condenados acabará por extinguir-me o último alento; o senhor ficará livre e rico.
Proferidas as últimas palavras com um acento de indefinível irrisão, a moça tirou o papel que trazia passado à cinta e abriu-o diante dos olhos de Seixas. Era um cheque de oitenta contos sobre o Banco do Brasil.
- É tempo de concluir o mercado. Dos cem contos de réis, em que o senhor avaliou-se, já recebeu vinte; aqui tem os oitenta que faltavam. Estamos quites e posso chamá-lo meu; meu marido, pois é este o nome de convenção.
A moça estendeu o papel que sua mão crispada amarrotava convulsamente. (...)"


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